Eu tive um mês de julho bem Católico – pelo menos para os meus padrões.
Fui batizada (como quase toda criança brasileira) na Igreja Católica, mas depois encontrei meu caminho em outra religião. Apesar disso, vou na missa de vez em quando e em julho fui duas vezes à Igreja (e mais uma terceira vez, mas só porque a Festa Julina do meu trabalho voluntário aconteceu no salão de uma Paróquia).
E, em todas essas vezes, não consegui parar de pensar em “The Keepers” e na Irmã Cathy Cesnik. “The Keepers” é um documentário que vai ficar junto de você por anos e anos.
A série, que é original da Netflix, conta a história do assassinato da freira Catherine Cesnik, que aconteceu na cidade Baltimore, em 7 de novembro de 1969.
Quando foi assassinada, a Irmã Cesnik tinha apenas 26 anos e era professora de inglês da Archbishop Keough High School. O desaparecimento e depois a descoberta do corpo da freira, 2 meses depois, chocou toda a cidade e o país. Esse post, do Huffington Post, em inglês, explica um pouco do que aconteceu na noite em que Cathy Cesnik foi assassinada.

Poucos dias depois do desaparecimento da freira, uma jovem, Joyce Malecki, também foi encontrada morta. Joyce e Cathy moravam a apenas alguns quarteirões de distância uma da outra.
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A perseverança de Gemma Hoskins e Abbie Schaud

Nos primeiros episódios de “The Keepers”, nós somos apresentados a duas ex-alunas de Cathy Cesnik, Gemma Hoskins e Abbie Schaud. As duas ficaram chocadas com a morte da professora e, depois de aposentadas, decidiram dedicar parte de seu tempo a investigar o que aconteceu com a freira.
Gemma é mais extrovertida e gosta de conversar com as pessoas, para conseguir captar as informações necessárias. Já Abbie realiza pesquisas em bibliotecas e hemerotecas e usa o Facebook como uma de suas principais ferramentas de investigação.
Juntas, as duas descobriram mais informações do que aquelas que foram coletadas pela polícia de Baltimore, em 1969. Provavelmente, foi o trabalho de Gemma e Abbie que fez com que polícia reabrisse a investigação sobre a morte de Cathy.

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A coragem das vítimas de abuso sexual da Archbishop Keough
Fiquei durante todo o primeiro episódio tentando encontrar motivos (jovem, bonita, freira… nada se encaixava) para o assassinato da freira. Sem sucesso. Eu me sentia tão cega quanto a Polícia de Baltimore deve ter se sentido em 1969.
Foi só no segundo episódio que eu pude, enfim, encontrar um motivo plausível.
Em 1995, ex-alunas do Archbishop Keough tomaram coragem e revelaram os sistemáticos abusos sexuais que aconteciam no colégio e que eram perpetrados pelo capelão da escola, o Padre Joseph Maskell, e por um outro membro da diocese.
A história do documentário deixa de ser sobre o assassinato da freira e passa a ser algo maior.
Os depoimentos mais contundentes são os das alunas Teresa Lancaster e Jean Wehner, cujas histórias me assombram até hoje, semanas depois de ter visto o programa.

Boa parte das memórias dessa época, Jean só conseguiu recuperar 30, 40 anos depois da morte de Cathy, de tão traumatizada que ficou.
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A forma como os episódios foram costurados um ao outro
O formato de “The Keepers” é bem parecido com o de “Making a Murderer”. As peças do quebra-cabeça vão se juntando aos poucos e você começa a entender melhor os vários fatores que causaram a morte de Cathy Cesnik.
É como se um véu fosse retirado e, aquilo que não estava claro no começo, passa a fazer sentido. Intercalando 1969, com os anos 90 e os dias de hoje, a narrativa não é linear.
No final, a gente não temos uma resposta concreta à pergunta “Quem matou Cathy Cesnik e Joyce Malecki?”. Mas a forma como a narrativa é levada deixa uma leve sensação de justiça, tristeza e pena. Ao mesmo tempo sentimos que o dever de Abby e Gemma foi devidamente cumprido.
O seriado é entristecedor e vai permanecer na sua cabeça por muitos, muitos, muitos dias, quiçá para sempre. Mas acho que é isso que o torna algo que merece ser visto.
Em 2019, o assassinato de Cathy Cesnik vai completar 50 anos e, com “The Keepers”, ele segue atual e relevante.
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O seriado não cai em sensacionalismo barato
Essa é a história da morte de uma freira que não só foi brutalmente assassinada, como também foi violentada. Esa é a história de adolescentes que foram manipuladas por padres católicos e que eram estupradas e abusadas física e psicologicamente com frequência. Essa é uma história de duas mulheres, que nunca desistiram de tentar descobrir a verdade.
Sabe aquele programa que tinha tudo para entrar num sensacionalismo barato, para tentar conseguir audiência?
Felizmente, “The Keepers” foge dessa fórmula.
Eu não consigo lidar muito bem com histórias que abordem estupro e, mesmo assim, consegui ver os depoimentos de Jean Wehner. Apesar de pesados e dolorosos (e de que eu, provavelmente, nunca vou esquecer deles), você vai acabar admirando a coragem dela.

Em um dos momentos, o médico-legista que analisou o corpo de Cathy, Werner Spitz (que também foi o responsável pelas autópsias de John F. Kennedy e de Martin Luther King), fala sobre o estado em que o cadáver foi encontrado. Ele mostra uma foto do crânio de Cathy e o seriado ganha um tom mais pesado.
Mesmo assim, dá para perceber que há um grande respeito à memória de Cathy Cesnik e as experiências de vida de Jean Wehner e Teresa Lancaster.
Esse é um assunto que não merece e que nem necessita de sensacionalismo. Os temas são abordados sem deixar de lado importância e a relevância que têm.
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A qualidade das entrevistas
Eu trabalhei como jornalista por um tempinho e sei como é complicado entrevistar uma pessoa que não quer que aquelas informações sejam divulgadas.
Só de imaginar Jean Wehner falando sobre a série de abusos que sofreu nas mãos do Padre Maskell, já dá para entender o porquê as entrevistas desse documentário são tão boas. Acredito que, nesses momentos, a equipe nem fez perguntas e só deixou a Jean falar livremente em frente à câmera.
Em um dos episódios, acompanhamos a entrevista de Edgar Davidson, apontado como suspeito de matar a Irmã Cathy – ele está quase senil e as perguntas são respeitosas à condição dele, mas não deixam de pressioná-lo um pouco.
Em outro momento, o atual detetive responsável pelo caso é bombardeado com fatos e informações que Ryan White, o diretor do documentário, coletou com Abby e Gemma. Ele chega a fazer caras de espanto porque que boa parte das informações ainda está sob segredo de justiça.
É bem interessante observar a dinâmica dessas entrevistas e dessas conversas.
Uma das minhas maiores expectativas era ver o depoimento do próprio Padre Maskell, mas ele teve um derrame e morreu em 2001, depois de passar anos na Irlanda, fugindo dos desdobramentos do caso. O documentário dá um enfoque nisso e mostra que Maskell, apesar de ser relativamente novo (ele morreu aos 62 anos), já sofria de demência e não se lembrava dos acontecimentos do passo.
Até mesmo Gerry Koob, um ex-Padre que afirmou ter sido muito apaixonado por Cathy e que teve um papel central na noite do desparecimento de Cathy, é posto na parede em alguns momentos.

Para aqueles que gostaram de “Spotlight – Segredos Revelados”, esse é um documentário que não só aprofunda a causa, mas que mostra que o trabalho de amadores também pode ser efetivo – de certa forma – nesses casos.
“The Keepers” não é um seriado que você deve ver só por ver. É um documentário que, imagino, pode levar alguns até a questionarem a própria fé.
Ao mesmo tempo, essa é uma experiência essencial. Nem que seja para impedir que coisas como essa sigam acontecendo no mundo, sem que ninguém se manifeste.
Beeijos, A Garota do Casaco Roxo